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A Revolução Silenciosa.

José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal e Estadual do Rio de Janeiro

O presságio de José Luís Fiori há dez anos atrás

José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal e Estadual do Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista para a revista Carta Capital, há pouco mais de dez anos atrás, 20-08-97. A entrevista auxilia na compreensão do que agora está vindo a tona com o caso Dantas. Na oportunidade, tendo presente a inserção do Brasil no mercado internacional e usando o conceito de ?revolução silenciosa? elaborado pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, Fiori procura destrinchar o significado dessa revolução.

Reproduzimos uma síntese da entrevista que foi publicada no boletim Cepat Informa n. 32 - setembro de 1977.

Segundo Fiori, "o que se está vendo é uma imensa recomposição patrimonial da riqueza brasileira, basicamente movida por uma transferência gi¬gantesca de riqueza ou privatização de riqueza; gigantesca pela absorção dos pequenos e médios pelos grandes. O empresário Benjamin Steinbruch (vencedor no leilão  da Vale do Rio Doce e numa das áreas licitadas na Banda B de telefonia celular) é personagem emblemático desse processo. Há um movimento de privatização de riqueza, de centralização do capital, para não falar também numa brutal concentração de riqueza".

Para José Luís Fiori, "dessas formas determinantes, certamente o vetor central pelos próximos anos será o processo de privatização.. É sua perspectiva que está segurando as Bolsas, a entrada de capitais externos em grande medida; ou a sua perspectiva ou a sua realização. Esse é o filão central. Há uma recomposição patrimonial do capital, da posse do capital, mas não se sabe se isso vai gerar crescimento de investimentos. Não se tem certeza disso, nem, muito menos, há nada assegurado de antemão. O que é seguro é que esse processo de privatização, além de ser um imenso proces¬so de transferência de riqueza, é talvez o maior esforço feito pelo Estado brasileiro para o fortalecimento do empresariado, muito maior do que na era desenvolvimentista".

A revolução silenciosa implementada pelo atual governo brasileiro implica em que, segundo Fiori, "o Estado deixa de ser locomotiva do crescimento, mas segue cumprindo o papel decisivo de vitalizador de um empresariado que não si muove. Antes esse empresariado viveu dos subsídios e dos créditos, hoje está vivendo, e viverá nos próximos dez anos, das privatiza¬ções. Esse processo tem uma outra face, a face política. Não mais do que uns 20 grandes grupos se beneficiarão disso e sairão mais concentrados, mais fortes, mais poderosos, mais integrados no sentido do capital financeiro, entre capital internacional e nacional. A face política atenderá à recomposição das bases econômicas, à consagração dos grandes ganhadores na economia brasileira nas próximas duas décadas. Há 20 anos, na Europa, se falava na "promoção dos campeões". Estamos fazendo, por um outro caminho, uma definição de quais serão os conglomerados que deterão o poder econômico no Brasil nas próximas duas décadas".

Tudo isto não sucede apartado do poder político. Segundo Fiori, "as definições estão aí: há a privatização de todo o filé mignon da telefonia e da comunicação sob o comando de um partido, o PSDB, e as privatizações elétricas sob o comando do outro sócio, o PFL. Quem parece não ter comando de nada nas privatizações são os outros dois grandes sócios da chamada base parlamentar: ?PMDB e PPB".

Analisando as privatizações na telecomunicação, Fiori constata que "tudo será repassado para cinco ou seis grupos. E dentro desses grupos, quase invariavelmente, além de financistas e, às vezes, empreiteiros, a mídia e os órgãos de imprensa. Está sendo entregue, na forma de concessão, o mono¬pólio do conteúdo e transmissão para grupos que serão os pólos de poder mediático nos próximos 20 anos.

No Rio Grande do Sul é a RBS, já entregaram São Paulo para o Estadão, alguma coisa é da Abril, o Grupo Folha ainda está na disputa, e por aí afora. No caso das telecomunicações a privatização terá um efeito, do ponto de vista da concentração do poder econômico privado decorrente do poder mediático, que será uma peça decisiva na política do próximo século. Já é hoje, será cada vez mais, e passa a ser não apenas concentrado, monopolizado; além disso, é uma forma de semi-concessão. Eles passam a ser diretamente concessionários do Estado. É uma festa".

"No caso das elétricas é um pouco diferente" - analisa José Luís Fiori. "É mais pulverizado e não por acaso está nas mãos de Antônio Carlos Maga¬lhães, do PFL. Isso permite maior número de combinações com grupos menos expressivos em nível regional. O poder econômico e político regional se recomporá também a partir daí, de uma maneira mais fragmentada e com mais apoio do BNDES, que terá um papel decisivo na privatização das elétricas. É de se esperar que haja a médio prazo, em cinco ou dez anos, um redesenho do poder econômico e político e do poder privado no Brasil, por obra do Estado".

A Revolução Silenciosa consiste em que o empresariado passe de uma teta para outra, para usar a expressão de Delfim Netto. "O problema é que a primeira teta era desenvolvimentista e a segunda é patrimonialista" - afirma José Luís Fiori. "A primeira tinha o impulso de crescimento e nessa segun¬da não há nenhuma evidência disso.

A grande obra de FHC, em síntese, será fazer com que voltemos da era do Estado desenvolvimentista para a era do Estado patrimonialista, pré-Vargas". Segundo Fiori, "as experiências pioneiras (da Revolução Silenciosa), já sinalizam  desintegração, a erosão por baixo, dos laços mais elementares da sociabilidade indispensável à existência do Estado". Para Fiori, "há uma perda de capacidade do Estado - não de apoiar o capital privado, isso segue sendo uma festa - e o Estado tende a perder a legitimidade frente à população. Isso somado à cultura que já vem de antes e agora é apoteoticamente festejada pela era liberal, essa coisa do individualismo, da competição, da eficiência, numa sociedade com escassos muros de contenção, leva a um individualismo predador e, no limite, paradoxalmente fascista".

Esse fascismo se manifesta nas ruas. "Pessoas incendeiam outras pessoas; não se admite a diferença; há uma desintegração dos laços familiares, da escola, do Exército. Não se pode chamar isso de revolução. É uma perversão, porque é uma lenta destruição. Mesmo que se chegue ao capitalismo liberal, se chegará por cima de mortos e feridos. Não apenas dos que morreram por homicídio, falta de salário, suicídio, mas de uma sociedade destroçada por um individualismo frenético, em todos os planos. Essa é a novidade, porque isso está no povo, na classe média, está entre nós, na universidade" - constata Fiori.

Trata-se de um "capitalismo hiperconcentrado, predador e socialmente cruel". Um exemplo: "a forma como a imprensa anuncia demissões é fantástica, porque é uma coisa eufórica dos jornalistas, dessas moças que lêem notícia em televisão. É um negócio eufórico: "Governo demitiu 150 mil, mas faltam..." Ninguém pergunta para onde irão essas 150 mil famílias?"

Para Fiori, "a compatibilização entre democracia e o capitalismo cruel pode dar-se sem a necessidade de um autoritarismo explícito ao estilo dos tempos da Guerra Fria. Há dois caminhos. Um é pela montagem ou uso de artifícios autoritários que não exijam o fechamento das instituições representativas. Abundam os exemplos: passar por cima do Judiciário, do Legis¬lativo, criar uma espécie de administração paralela. O segundo caminho, no curto prazo, é o massivo consenso e controle da mídia e da formação da opinião".

A 'Revolução Silenciosa' e a dança das cadeiras das elites brasileiras. Algumas considerações críticas

Daniel Dantas é produto de uma profunda ?revolução silenciosa? que se processou no capitalismo brasileiro a partir dos anos 90: a brutal transferência de ativos do Estado para o mercado. Os anos dourados do neoliberalismo brasileiro produziu uma nova burguesia nacional associada ao capital transnacional. A compreensão do caráter e significado do conceito ?revolução silenciosa? é analisado por Inácio Neutzling em artigo escrito há dez anos atrás para a revista Convergência n. 310/1998.

Em que pese o artigo ter sido escrito há uma década, o mesmo auxilia na compreensão do que está acontecendo nesse momento na conjuntura brasileira. Daí a sua reprodução. Inácio Neutzling é diretor do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) e presidente do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT).

Eis o artigo.

A crise das bolsas asiáticas no final de 1997 foi uma clara manifestação das contradições e limites da mundialização do capital. Países antes apresentados como tigres e exemplos a serem seguidos, de uma hora para outra se transformaram em modelos que "estavam fora de moda" (1). "A época das ilusões está terminando" - escreve Alain Touraine, na esteira da crise mundial. "O sonho de um mundo unificado pelos mercados e que se projeta para a prosperidade e a liberdade se rompeu em pedaços"(2).

A crise asiática teve imediata e grave repercussão na economia brasileira. Depois da crise mexicana de 1994, a economia brasileira deu uma nova lição sobre a influência dos mercados financeiros globalizados. Tornou-se manifesta, deste modo, a extrema fragilidade da economia brasileira que foi colocada à mercê do alto grau de volatilidade dos mercados financeiros. No final de 1997 e no início de 1998, "o Brasil se encontra à mercê das interpretações a serem feitas pelos capitais internacionais e das turbulências que poderão se originar em outros países"(3). O final de ano terminou, no Brasil, com perspectivas sombrias para 1998: recessão econômica, desemprego crescente, demissão de funcionários públicos.

Tudo isto não é fortuito. O Brasil fez, a partir do final dos anos 80, mais precisamente, no segundo turno das eleições de 1989, uma clara opção: a inserção competitiva no mercado internacional. Esta opção foi reafirmada com mais "glamour" e com nova ênfase na eleição de 1994..

O Brasil, desde o final da década de 1980, adotou a estratégia que pode ser formulada da seguinte forma: inserção competitiva do Brasil no mercado internacional. A elaboração desta estratégia foi feita, na segunda metade da década de 1980, pelos tecnoburocratas do BNDES. Esta estratégia foi vitoriosa nas eleições presidenciais de 1989, especialmente no segundo turno, no dia 17-12-89.

O governo Collor a implementou, ainda que de maneira estabanada. O 'impeachment' de Collor é um percalço neste trajeto, que, no entanto, é retomado, com novo vigor, pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). O programa de FHC compõe-se, fundamentalmente, dos seguintes pontos: a privatização, a retirada do Estado da economia, a desregulamentação de alto a baixo, o ataque aos direitos sociais, conquistados, no que se refere, especialmente, ao mundo do trabalho, na assim chamada Era Vargas. Este programa passou a ser o livro comum, transcendental, enfim, a bíblia da Era Cardoso(4 ).

Tentaremos, ainda que de modo sucinto, analisar a estratégia da inserção competitiva do Brasil no mercado internacional em três pontos: inicialmente, descrevemos os grandes parâmetros que regem o capitalismo no final do século vinte. Num segundo momento, muito esquematicamente, analisamos algumas características peculiares do Brasil que, eventualmente, permitir-lhe-ia um outro tipo de inserção no mercado internacional. Num terceiro momento alinhamos a posição governamental de defesa da opção que é implementada pelo governo FHC e a crítica a esta estratégia por renunciar à construção de um projeto nacional onde caibam todos(as) os(as) brasileiros(as).

1.- Os Mandamentos do Mercado Internacional

Nos últimos vinte anos se impôs no mundo uma nova Tábua das Leis. "A "antiga" aliança foi um pacto entre Deus e o homem, centrado sobre a idéia do amor entre Deus (o criador, o pai) e a pessoa humana (sua criatura, o filho), e entre as pessoas humanas (Amarás o teu próximo como a ti mesmo). A nova Tábua da Lei consagra a "aliança" contraída pelos grupos dirigentes das sociedades desenvolvidas com aquele que se tornou o novo deus do nosso tempo: o mercado.

O mercado é aceito, quase que universalmente, como o grande regulador da vida econômica e social ao qual todo indivíduo, toda empresa e toda a sociedade devem se submeter"(5 ). Ou seja, como declarou recentemente o presidente da Semp Toshiba, uma das maiores empresas brasileiras do setor eletro-eletrônico, Affonso Brandão Hennel: "Nós somos súditos do mercado. O mercado não quer saber se nós somos inteligentes, se somos competentes, se nós fomos competentes, se nós seremos competentes. O mercado é diferente. Nós estamos sujeitos às regras do mercado. E quando não nos sujeitamos às regras do mercado, geralmente nos damos mal. Tanto os funcionários quanto as empresas" (6 ).

Portanto, há aqui uma diferença fundamental entre o Deus judaico-cristão e o "deus mercado". Enquanto que aquele é misericordioso para com a pessoa humana, este não perdoa nada e ninguém. Se se comete um erro se é pura e simplesmente eliminado.

Os economistas, os políticos, a opinião pública refere-se ao mercado sem pensar. O conceito de mercado tornou-se um lugar comum, omnipresente. Ele é chamado como testemunho e é erigido como supremo juiz. Pois, "a 'sanção do mercado' substitui, vantajosamente, o juízo de Deus. Seguramente, fora do mercado não há salvação. O mercado é, de todos os mecanismos econômicos, o mais mágico e o mais simples. Ele é o alfa e o ômega do nosso mundo, que se tornou um só e único mercado"(7 ).

A nova Tábua das Leis contém os seguintes mandamentos (8 ):

1º.- Não resistirás à mundialização!. Este mandamento está ligado ao processo de mundialização das finanças, do capital, dos mercados, das empresas. A mundialização é apresentada como inevitável e irreversível. É necessário se adaptar a tal processo para que nos tornemos um sujeito mundial na nova ordem.

O 2º mandamento decorre da revolução científica e tecnológica: Não canse, jamais, de buscar a inovação tecnológica! Não se pode resistir às novas inovações tecnológicas. É preciso se adaptar o mais rápido e intensamente possível, pois elas estão a ponto de mudar a condição humana e o mundo. Uma nova sociedade está prestes a nascer: a sociedade da informação.

O 3º mandamento diz: Liberalizarás totalmente o mercado. Não manterás nenhuma proteção para a economia do teu país! Este mandamento decorre da seguinte idéia: a mundialização da economia só pode prosseguir "corretamente" com os mercados nacionais completamente liberalizados. Toda proteção "nacional" é considerada herética. Frente ao mercado, não existe mais o interesse da sociedade nem a vontade democrática soberana. Segundo este mandamento, nenhuma proteção é admitida ou tolerada, mesmo frente aos predadores financeiros mundiais que, mesmo aproveitando-se da total liberdade dada aos movimentos financeiros, escapam, desde os anos 80, a qualquer controle político.

Pois, o mercado se justifica moralmente fundado em três crenças interligadas: o mercado livre aumenta a liberdade, a justiça e a eficiência. Liberdade para decidir o que comprar, que negócios ou profissões abraçar, onde morar. A "única"(!) restrição imposta é a renda e a riqueza individuais. A segunda crença consiste em que o poder de compra concedido pelos mercados é economicamente justo. A terceira é que os mercados são eficientes (9)

Daí advém o 4º mandamento: "Desregularás o funcionamento da economia e da sociedade. Não permitirás mais ao Estado intervir na fixação das regras da economia, mas confiarás esta tarefa inteiramente às forças livres do mercado!" O mandamento é claro: a ação do Estado se limita a criar o ambiente mais propício possível para que o mercado possa guiar e orientar o funcionamento da economia. Segundo este mandamento, se é "cidadão" quando se é um bom "produtor" e um bom "consumidor".

Chega-se, assim, ao 5º mandamento: "Privatizarás tudo que for possível. Deixarás o poder de direção e controle ao setor privado!" A exigência é: tudo deve passar para o poder privado: a propriedade e a gestão do transporte urbano, a água, o petróleo, a eletricidade, as telecomunicações, os bancos, as companhias de seguro, a assistência médica, os hospitais, as escolas, as universidades... Pois, esta é a crença, a privatização permite que se utilize de maneira mais eficaz os recursos materiais e imateriais de nossos países, no interesse dos mercados.

Enfim, para coroar e dar uma aparência de coerência ao conjunto dos cinco mandamentos, as novas Tábuas da Lei impõem um último mandamento: "Serás o melhor, o excelente, o ganhador: serás competitivo!" Se não fores competitivo, não terás nenhuma chance de sobreviver no quadro das batalhas mundiais, tecnológicas e comerciais, pois o outro (teu inimigo) te "matará", te eliminará do mercado. Portanto, é preciso que tu sejas o número 1. É necessário que conquistes cada vez mais e maiores cotas do mercado. É o "evangelho da competitividade", para o qual cada indivíduo, cada empresa, cada cidade, cada região deve ser a mais forte e a mais competitiva.

A obrigação da competitividade não se limita às empresas mas todo mundo é constrito a ser competitivo. Este mandamento legitima tudo na vida sócio-econômica e ideológico-moral. Isto é, ele legitima a esfera sócio-econômica assegurando que sendo competitivos teremos maior eficácia na combinação dos recursos disponíveis. Ele legitima o plano ideológico-moral na medida em que ele me convence do seguinte: se eu provo que sou excelente, sendo competitivo, tenho o direito de governar os outros, fixar os objetivos e determinar as prioridades.

2.- O Brasil no Mercado Internacional - Alguns dados macroeconômicos

Que Brasil é este que busca se integrar competitivamente no mercado internacional? Qual é o seu potencial? A breve descrição de algumas características do seu potencial, evidencia que o Brasil não é um país qualquer.

a.- O Brasil tem uma taxa histórica de crescimento econômico entre 6 e 7% ao ano. Trata-se de uma taxa muito significativa. Um estudo econômico recente mostra que, entre 1940 e 1980, o Pro¬duto Interno Bruto, na média anual, cresceu 3,6% nos EUA, 5,2% no Japão e 6,4% no Brasil(10). A economia brasileira é dotada de fantástica capacidade de crescimento, caracterizando-se como "uma das economias mais dinâmicas do mundo"(11).

É importante assinalar este fato porque freqüentemente se esquece que a América Latina, e especialmente o Brasil, conheceu, durante um longo período, uma taxa de crescimento superior ao conjunto dos países da OCDE, que reúne os países mais ricos do mundo. "De 1970 a 1973, os países da OCDE cresceram 5,0%; de 1976-1979, de 4,2% e de 1980-1981, 1,3%. De 1970 a 1973, os países da América Latina cresceram 7,2%; de 1976-1979, de 5,5% e de 1980 a 1981 de 4,6%. O crescimento da América Latina, após a guerra, foi mais rápido do que o dos EUA durante sua decolagem. Durante um período de trinta anos (1950-1980), a América Latina alcançou uma taxa de crescimento de 6,7% ao ano, enquanto o mundo todo só chegava a 5,9%" (12).


b.- O Brasil se modernizou em termos industriais. A implantação da política de substituição de importações de bens industriais, a partir de 1930, propiciou a instalação de um importante parque industrial. Um exemplo é o parque automotivo. Em 1996, o Brasil produziu 1,8 milhão de veículos. Em 1997 registrou-se o recorde de 2 milhões de veículos(13). Em cinco anos o Brasil, segundo a Associação Nacional de Veículos Automotores - ANFAVEA - saltou do 14º para o 7º lugar entre os fabricantes de auto¬móveis no mundo. Está a caminho de chegar, no ano 2000, ao 5o. lugar.

Mas não é só. Basta citar o avanço tecnológico, por exemplo, na área da exploração de petróleo em profundidades marítimas. Desenvolveu uma moderna indústria aeronáutica especializada na construção de aviões de pequeno porte. Instalou-se uma ampla infra-estrutura de geração de energia elétrica. O país foi integrado de norte a sul, de leste a oeste pelo sistema viário e pela instauração das telecomunicações. Uma importante plêiade de empresas estatais foi instalada: Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás, Embratel, Telebrás etc.

Este processo de modernização foi conservador. Trata-se de uma modernização conservadora, fundamentalmente, porque não modificou a agricultura que continuou baseada em latifúndios voltados para as exportações. A industrialização optou por técnicas desadaptadas aos recursos naturais, às necessidades sociais e ao potencial econômico do Brasil. Por causa destas duas características anteriores, ela exigiu a concentração da renda para criar o mercado que não existia (13).

c.- Uma das características importantes do Brasil é o seu mercado consumidor. Para o empresário Roberto Demeterco, do grupo Mercadorama, no Brasil, são, hoje, 71 milhões de brasileiros que consomem. Destes 4,4% são da classe A. Eles, no entanto, são 22,9% da força de consumo. 15,7% são da classe B que participam com 26,3% da força de consu¬mo. Portanto, estas duas classes somam 49,2% da força de consumo. Ou seja, 20,1% da população constitui a metade da força de consumo do Brasil. Da classe C fazem parte 26,3% da população. Ela participa da força de consumo somente com 24%. A classe D, a maior, constitui 38,6% da população e participa da força de consumo somente com 10,1%. Segundo o empresário, mesmo somando as famílias classes C e D, o consumo médio ainda é inferior às que têm maior renda (14).

Este mercado, altamente concentrado e rico, é resultado da refinada arquitetura sócio-econômica da concentração de renda, parte constitutiva da modernização conservadora. Ou seja, para fazer funcionar, em um país com uma imensa população pobre, uma economia voltada para uma população consumista de bens característicos de países com economias ricas, produzidos por técnicas desadaptadas, o Brasil tomou medidas concentradoras de renda, de recursos e de benefícios.

Essa concentração se fez transferindo renda da maioria marginalizada para os grupos integrados; das regiões rurais para os centros urbanos; dos setores sociais para a economia; dos pobres para os ricos e os quase-ricos; do mercado interno de massas para o externo, incluindo neste a minoria privilegiada que vivia fisicamente no País mas estava economicamente no estrangeiro; do território espalhado para os centros concentradores; das regiões pobres para as regiões ricas; dos setores produtivos de bens básicos não duráveis e de massas, para os setores produtivos de bens duráveis, supérfluos e exclusivos; dos setores produtivos para os setores financeiros. Enfim, os economistas, apoiados por um longo período ditatorial, criaram um sistema de políticas que visava dinamizar a economia através da concentração da renda, como o caminho para uma demanda dinâmica.

Esta concentração de renda foi acompanhada por uma concentração geográfica. Basicamente, em termos populacionais e industriais, o Brasil se concentra num quadrilátero que tem como vértices, aproximadamente, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Presidente Prudente e Santos, além da estreita faixa litorânea. Analisando os novos investimentos, em grande parte motivados pelo Mercosul, percebe-se um fortalecimento da tendência da centralização industrial, econômica e populacional no Sudeste e no Sul do Brasil.

Com a vinda de algumas montadoras para o Paraná e o Rio Grande do Sul, este quadrilátero se abre um pouco mais em direção ao sul, reforçando a tendência do desequilíbrio econômico-social inter-regional. A distribuição dos incentivos fiscais, dos gastos do governo e das estatais federais confirmam esta tendência. 45% dos incentivos fiscais, 54% dos gastos do governo e das estatais federais e 41% dos empréstimos oficiais em bancos fica com o Sudeste do País.

Enquanto isso, o Nordeste, onde estão 55% das famílias mais pobres do Brasil, recebe somente 8,5% dos gastos federais, 8,8% dos financiamentos do Banco do Brasil e 9,5% dos subsídios federais. A concentração da maioria dos exportadores está nas região Sul e Sudeste. Apenas 380 grandes empresas, de um total de cerca de 13 mil companhias que operam com exportação, respondem por 80% das vendas brasileiras ao mercado externo. Dessas, a maioria está instalada nas regiões Sul e Sudeste (15). 66% dos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar- Pronaf - foram absorvidos pelos Estados do Sul, enquanto que os agricultores do Nordeste ficaram com apenas 8% do crédito (16).

d.- O território brasileiro é um dado permanente do nosso destino (17). A modernização conservadora instaurou a rede de transportes, informações e comunicações, a integração bancária. As novas tecnologias agrícolas tornaram economicamente viável o acesso a um território muito maior, possibilitando o aproveitamento de enormes extensões, antes marginais. Onde havia um grande país geográfico, surgiu, potencialmente, um grande país efetivo.

No entanto, a integração deste país não se completou, especialmente, por causa de uma estrutura de propriedade extremamente discriminatória. O Brasil e a América Latina, ainda tem a possibilidade, diferentemente da América do Norte ou da Ásia, de desenvolver um sistema adaptativo ajustado às condições da floresta tropical úmida, multiplicável através de um modelo que combine sustentabilidade ecológica e viabilidade econômica. Pois, além de mantermos uma relação favorável entre população e território, não nos falta potencial natural para isso, a começar pelos recursos biológicos, que serão cruciais no século XXI. Basta recordar o potencial da bacia amazônica. 47% das reservas de água doce fluvial do planeta estão ali (18).

A região amazônica não tem igual em termos de megadiversidade, uma das bases das economias do futuro. O Brasil, que abriga em seu território 36% das florestas tropicais remanescentes, é o país mais rico do mundo em recursos biológicos. O mesmo ocorre com os recursos energéticos e minerais. No Cone Sul, 1/3 dos 60 mil megawatts de capacidade hidrelétrica ainda não foram explorados. Os recursos petrolíferos já mapeados nessa região incluem 2,3 bilhões de barris na Argentina e 8 bilhões no Brasil. O reservatório mineral da serra de Carajás, sob controle da Companhia Vale do Rio Doce, igualmente, não tem equivalente no mundo.

e.- O Mercosul e a posição do Brasil no seu interior têm um significado importante no mercado internacional. Citemos somente um exemplo. Até os anos 90, o mercado brasileiro era de um milhão de veículos. Com o crescimento da demanda interna, o número saltou para 1,8 milhão de unidades. Esse volume, somado ao do Mercosul, fez surgir um mercado regional de 2,2 milhões de veículos por ano, próximo ao da Inglaterra e França. As grandes multinacionais do automóvel escolheram o Mercosul como ponto estratégico na conquista do mercado global.

Segundo o jornal italiano La Repubblica, para as montadoras trata-se de conquistar o mundo a partir do Mercosul. "O projeto é ambicioso, mas não há alternativas - segundo o jornal italiano. Ou assim ou se termina fora das rotas de sobrevivência na indústria automobilística mundial. Isto foi compreendido por todas as grandes montadoras e cada uma está se preparando como pode para enfrentar este desafio". É neste quadro que se explica a opção, por exemplo, da Fiat de construir o seu "world car" em Betim, MG. Segundo FHC, "o Mercosul garantiu uma vitalidade enorme do comércio entre o Brasil e a Argentina, e evidentemente o Brasil é o dínamo desse processo".. E o presidente continua: "Isso leva o Brasil a ser o centro da América do Sul."(19).

Estas características fazem com que a "inserção competitiva do Brasil no mercado internacional não seja a mesma do Paraguai e do Peru. Mesmo fundamentalmente submisso, o Brasil tem uma economia forte, que lhe dá certas condições de barganha e vantagens relativas em relação aos seus parceiros atrasados, já 'globalizados'"(20).

3.- A inserção subordinada do Brasil no Mercado Internacional

O Brasil, como dissemos acima, optou por seguir à risca, escrupulosamente, os mandamentos da Tábua das Leis do mercado internacional. O Brasil apostou na inevitabilidade e na irreversibilidade da mundialização das finanças, do capital, dos mercados e das empresas. Liberalização, desregulamentação e privatização são as palavras de ordem. Ou seja, "tudo deve ser colocado a serviço da "Santíssima Trindade" do Deus Mercado" (21 ).

A Revolução Silenciosa

Para FHC a opção de integrar o país competitivamente no mercado internacional instaura uma nova era no Brasil. Talvez, no futuro, ela será conhecida como a Era Cardoso. Era Cardoso, como o próprio presidente assinalou no seu discurso de posse, que substitui a Era Vargas (22). Trata-se, segundo o presidente, de uma revolução silenciosa que está se processando. Sobre o conceito "revolução silenciosa", usado por FHC, não se viu nada escrito nem articulado. Mas, lendo e estudando as pronunciamentos de FHC temos uma visão do que ele denomina de revolução silenciosa.

Numa longa entrevista para a Revista de Cultura e Política, Lua Nova, editada pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC - FHC explica que o seu governo está reorganizando o capitalismo brasileiro: "Nós não estamos nos transformando num produtor de commodities, nós estamos fazendo uma outra coisa. Como se tem a internacionalização tem que escolher. O modelo não é mais autárquico. No caso dos automóveis, a decisão que estava em jogo era saber se nós íamos ser capazes de lançar produtos novos em nível global. Porque produzir automóvel, uns 30 ou 40 países fazem. Aumentar a produção nós podemos aumentar. O que se decidiu foi outra coisa, e é por isso que as empresas estão todas vindo para cá. E isso aqui passou a ser um dos seis ou sete pólos capazes de produzir novos modelos: fazer o design, o engineering, fazer o marketing, fazer tudo aquilo".

O presidente continua a sua análise: "Nós continuamos na vanguarda em pesquisa de perfuração no mar, em poços profundos, e vendemos tecnologia nessa área. O mesmo vale para papel e celulose, onde o Brasil desenvolveu um tipo novo de fibra, por causa do eucalipto, que é produzido aqui. Um dos setores mais importantes é o de telecomunicações e a telemática em geral. Pelas informações que eu tenho, vamos já ser o segundo ou terceiro mercado do mundo e não desfaremos o centro de pesquisas da Telebrás" (23 ).

Para FHC, "o Brasil encontrou uma janela de oportunidades". "Se eu tive alguma virtude na minha ação depois que me tornei ministro da Fazenda, e mesmo como ministro do Exterior, foi que eu vi isso. Disse: olha aqui, mudou o mundo. Então, ou nós entramos nessa brecha ou nós vamos ficar mal. Mas nós topamos e estamos enfrentando com sucesso esse desafio. Então, existe uma política nisso. E mais do que isso, é basicamente através do BNDES que nós estamos organizando o capitalismo brasileiro. As pessoas não sabem disso, não percebem isso. Mas nós estamos reorganizando o capitalismo brasileiro" (24).

Para FHC "o tipo de desenvolvimento que está sendo feito aqui é de outra natureza (refere-se ao modelo de substituição de importações - anotação nossa). E quando as pessoas criticam com o olhar do modelo anterior, está tudo errado. Elas não viram que mudou o patamar, e nesse novo patamar o que está acontecendo? Estamos agregando valor ao que fazemos aqui e, portanto, com maior possibilidade de aumentar a produtividade, a renda, e tudo o mais" (25). Respondendo às críticas de que não há projeto, responde: "Ficam pensando que não há estratégia, que é preciso ter um projeto. Mas há um projeto até mesmo nacional, se quisermos usar esses termos mais fortes. Existe um projeto e, portanto, uma estratégia de desenvolvimento"(26).

Na implementação dessa estratégia, há um risco e a necessidade da continuidade. "Só há um risco real, e não é nosso - afirma o presidente. O sistema financeiro internacional está complicado. Houve a internacionalização da produção, a globalização, o descolamento do setor financeiro face ao setor real produtivo, tudo iss

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